O bom demais pode ser verdade

Hoje, uma semana depois, eu acredito que consigo entender o que aconteceu no dia 1º de novembro de 2023. Ou acho que consigo. Não vai ser uma história de um acontecimento que mudou minha vida, mas nem por isso deixa de ser uma ótima história. Não quer ler, sai fora também. Brinks, lê aí, ow.

O CHAMADO

Começou na noite de 29 de outubro com uma notificação: “Gol do Cuiabá”. Eu não sou o mais impulsivo, mas ali foi automático. “Vou quarta”. Onde? “No Engenhão!” Como? “Sei lá, você faz muita pergunta”.

No grupo ao lado, o amigo Gui Lopes, companheiro de visitas, avisa que vai estar no Rio quarta e que pretende ir ao jogo. Animo de vez. Vou, claro que vou. Final de campeonato, porra!

“Putz, não tem mais ingresso de visitante”. Fuén. Mas calma, e se… Ah, não, doidera.

PAM, segunda. O sentimento, quase um chamado, persistia. Bora pro Rio, maluco, vai dar bom. Tinha rolado um 5 a 0 do neida e o time parecia que tava afim, ou pelo menos nos eixos, de novo. “Gui, vamo na torcida do Bota mesmo, foda-se”, “Beleza, vou comprar”.

Compramos. Superior Oeste A. Nunca fui ao Engenhão. Primeira vez e num primeiro contra segundo que podia decidir um campeonato já decidido. Pego umas promoção de busão, quarta de manhã-chega a tarde, quinta de madrugada-chega de manhã. Fechou.

No mesmo fim de semana anterior meu celular tava dando seus últimos sinais de vida, tela piscando, ficando preta e o uso prejudicado. Cheguei pro busão quarta com o orifício na mão de não rolar ler meu qr code, de mostrar meu RG, e de fazer uma entrevista de emprego. Sim, iam me ligar no busão sobre um emprego.

Ligaram. Eu vi. A tela escureceu, não voltou. Não atendi. Pensei: não vou conseguir entrar no estádio. Deveria ter pensado que não ia conseguir o emprego? Sim. Mas não era o dia nacional da racionalidade. Dormi minha vida toda naquele ônibus, a ansiedade tinha ficado na noite anterior. Só restou a preocupação tecnológica.

Era pra chegar 16h30. Chegou 19h20. Na Barra da Tijuca. Parecia mais longe do estádio, mas foi só um drama mental. 40 minutos cheguei na Estação Olímpica Engenho de Dentro, vestido de Justiceiro, mas com o verde no coração (esperando algum pra botar na mente tb #jah).

Com tempo de sobra, deu pra elaborar mais preocupações. Uma delas, a do celular, tinha diminuído. Descobri que se apertasse com os dedos a parte de cima e de baixo do celular, como uma garra, a tela funcionava tempo suficiente para eu me comunicar ou mostrar um qr code. Essa info pode não ser importante agora, mas tem uma mística depois. AGUARDEM.

Outra mais clara era: não posso dar pinta de pauliste, ou pior, de palmeirense. Difícil. Só ver minha cara de desgraçado que você já chuta que é um dos dois. Mas como tava fazendo cosplay de botafoguense, talvez não desse nada.

Eu juro, eu literalmente não havia proferido uma unidade de palavra. Trombei um ambulante na rampa da estação, ele trocava palpites de resultados com duas botafoguenses, crentes que ia ser “1 a 0, gol do Tico”. Acho inclusive bem fofo que a torcida chama Tiquinho de Tico, faço isso com o Dudu, o chamando de Eduardo. Uma intimidade, sabe.

Voltando ao comerciante, ele me olhou e exatos 1,67 milissegundos depois me perguntou: “Tu é paulixta, néam?”. Me senti o próprio Supla vestido com a bandeira paulista. Fui tentar disfarçar: “Não, não sou, não”. Soei como o Mazzaropi dando rolê na Mooca.

“Ah, maix tu é Palmeirax, néam?”. “Não, sou santista”. POR QUE, DEUS? COMO ISSO IA AJUDAR MINHA SITUAÇÃO? Sorte que o vendedor tinha mais o que fazer e fez sua oferta de silêncio: “Leva um latão que tá tudo certo”. Sou evangélico mas tive que beber para sobreviver, bebi aquele latão e mais umas 8 só pra garantir que ia viver mesmo.

Trombei o diminuto GuiLo, filho da JLo, na entrada da torcida VISITANTE, que era do lado da estação, e fiquei, “ué?”. Um amigo parmera que mora no Rio, o popular Paulo Junior, falou que é de boa, treta de futebol é coisa de paulista. Torcedores indo e vindo e eu tava mais tranquilo pra ficar de mandante adversário.

Vamos ao que importa.

O JOGO

Antes de prosseguir, um comentário: PUTA QUE PARIU, MAS VAI TOMAR NO CU, FUTEBOL É DA HORA DEMAIS, MAMEM OUTROS ESPORTES!

Seguimos.

Primeiro momento de tensão. Vou conseguir passar na catraca? Apertei o filhote, a moça pediu pra segurar, falei que melhor não, sou casado, digo, tava com problema, deixa que eu passo. Passou. Entramos. Porra! Vamo, Fogão! Digo…

De cara, trombamos uma mina vendendo copo do jogo. Será? Nunca compro os do Palmeiras, mas ali pedia. “Quanto tá?” “Vinte reaix” “Oloco”, a mina me olhou como se eu fosse o próprio Faustão, mas o GuiLo falou que queria e sou José-Vai-Com-Os-Outros e peguei o meu. “Olha, ali a garota eixtá dando shots de energético”. De graça? Bora. “Esse é o patrocinador do time de vocêix”, “Ué, não é seu time”, “Hoooje, eu sou Botafogo”, “A gente também”, Rimos muito e nos beijamos, eu e o GuiLo.

SEGUIIMOS.

Subimos até o último anel, ui, e imaginamos ali que a vista deve ser da hora de dia. Fomos no mar de mijo que era o banheiro. Pegamos uma cerveja e bora pro lugar. Era hoje. Bonita a torcida, bonita a festa, bonito o tapetinho, as músicas parecidas com as nossas, era só trocar Fogo por Porco que a gente tava no Allianz. Ou quase.

Eu sou mais afeito a atuação. Nasci ator mas não exerço a profissão porque fiz voto de pobreza. Mas foi noite de Oscar. GuiLo fez um papel importante na contraposição do torcedor ativo e do preocupado.

Cantei bastante, apoiei, xinguei passe errado, verbalmente os do Bota e mentalmente os nossos.

Quem viu o jogo sabe que o primeiro tempo foi um grande passeio dos cariocas. O primeiro gol eu até celebrei junto, afinal, Palmeiras é o time da virada, é o time do amor. Era o gol da explosão. Tinha que manter a pose.

O do Tchê² eu nem vi. Só quando tava lá dentro. Golaço. Celebração aqui mais discreta, descrente de um balaço que teve lugar certo.

No terceiro eu já queria mijar no túmulo do Garrincha. Porra, a gente vai lá apoiar, de boa, na moral, e os cara vem humilhar nóis? A expressão de MORTE no rosto do GuiLo dizia tudo. O que a gente tava fazendo ali? E mais, o terceiro era pra ter sido, sei lá, o quinto. Eu olhava pro campo e na minha mente piscava aquelas imagens de guerra, morte, explosão, 7 a 1, Bolsonaro eleito, só desgraça.

Pensei o mais sincero dos pensamentos: foda-se, vou pegar uma cerveja.

No curto mas extenso caminho até o bar, tentei me acalmar sem pensar na grana que tava gastando, nos perrengues, no emprego possivelmente perdido, na noite longe da namorada, no genocídio israelense, me resignando mesmo, pensando: pô, uma hora tem que perder como visitante. Estava (estou #spoiler) invicto. Tá tudo bem, vê minha Bud.

O DESENCANTO

Quem acompanha o futebol brasileiro conhece uma máxima bastante popular: “tem coisas que só acontecem com o Botafogo!”. A frase foi adaptada para outros clubes, mas foi criada em General Severiano.

Todo esse campeonato tem uma mística diferente. O Botafogo, apesar de gigante, não agia como tal há décadas. Hoje, após grande aporte financeiro internacional, sonha sonhos muito bonitos. Como ser campeão brasileiro 28 anos depois de Túlio.

Pontos corridos é uma porra. É de descaralhar a cabeça. Quem tá na frente, ainda mais na reta final, sofre jogo após jogo. Quando se abre uma vantagem e o título vira obrigação, a angústia se multiplica. E isso explica o clima de 3 a 0 não ter uma aura de certeza, mesmo que eu, rival do dia configurado de dono da casa, tivesse certo da derrota.

E tudo aconteceu como uma esquete. Eu, após pedir a minha Bud três parágrafos atrás, ainda imerso em pensamentos de dor e sofrimento, noto a chegada de um verdadeiro botafoguense do meu lado. Feliz? Não sei. Confiante? Talvez. Eufórico? Jamais. Botafoguense? Sim.

Pela segunda vez no dia alguém me direciona a palavra sem que eu tenha iniciado qualquer tipo de conversa. E a frase, hoje percebo com ainda mais clareza, foi fatal:

“Parece bom demaix pra ser verdade”.

3 a 0 fora o baile no primeiro tempo. No segundo colocado. Um time cascudo e multicampeão. Que na última vez que tinha tomado 3 gols em um tempo o Collor era Presidente. E o torcedor desabafou. Como se ali fosse um lugar incomodo, como se ele não pertencesse nesse estado de felicidade.

A verdade é que ali, no momento daquela frase, o Campeonato Brasileiro de 2023 tinha um campeão, justo e irrefutável: o Botafogo de Futebol e Regatas.

Mas o sentimento não parecia real. E a confissão a um desconhecido parecia impossível de se segurar. Ali, não me pareceu que ele falava com um companheiro de arquibancada, ele só falava, fosse Abel Ferreira, ele usaria as mesmas palavras e o mesmo tom que pedia ajuda e compreensão.

Eu só respondi: “Que isso? É tudo nosso!” Certo de que ele, envolto em sua própria realidade, jamais perceberia que falava com o adversário. Ele acenou com a cabeça e se foi.

E eu fiquei matutando a frase dele até sempre. De certa forma, o desespero alheio virou minha calma. É egoísta, mas a vida é injusta e a gente morre no final, então tá tudo bem.

Voltei da cerveja e virei pro GuiLo. “Você acha que um empate deixa o campeonato animicamente aberto?”. O amigo não estava no melhor do humor e da fé, e refutou qualquer princípio de esperança que eu quisesse emplacar nele com a fria matemática. Garantiu que o empate favorecia os líderes, que não tinha como buscar, que tinha um percentual de pontos a ganhar e blábláblá. Porra, eu só queria uma crença sem sentido, sabe. Me ajuda, GuiLo, depois é preso e não sabe porquê. Brinks, te amo, amigo.

A VIRADA

Na volta do intervalo, olhando pro nada e pro tudo ao mesmo tempo, notei que debaixo do meu assento tinha uma cordinha amarrada. Seria um FIO DE ESPERANÇA, risos? Mentira, essa eu pensei agora. Na hora, eu queria tirar o fio porque tive uma ideia de amarrar o meu celular para fazê-lo voltar a funcionar na.. amarra, risos novamente.

Fiquei então, agachado e com a cabeça deitada na barra de ferro em frente ao meu lugar. Estrategicamente de olho no jogo via telão. Foi assim, entre nós nos dedos, que vi Endrick, o Fenômeno, driblar quatro e fazer o primeiro. Não me movi. Só fechei o olho celebrando por dentro. Se eu precisasse ficar o jogo inteiro deitado ali desenrolando o fio pra virar, eu faria. Ainda bem que não precisou.

Ali, o estádio morreu. Ou pelo menos, sua alegria. Porque a indignação foi crescendo com o passar dos minutos e das decisões sempre erradas de todo e qualquer juiz de futebol. Todos erram até quando acertam. Profissão desgraçada.

A partir daquele momento reforcei meu Wolf Maya pra não dar pinta e sair falecido do estádio. Anularam um gol nosso, e eu me vi levantando a mão pedindo impedimento, mas torcendo pro VAR validar. O jogo tava pra nós. Boas chances, mas a bola não entrava.

Já pensei: bora diminuir pra melhorar saldo na busca por vaga na Libertadores. Razão é uma merda, né? Olha que pensamento mais sem graça. Ainda bem que sou pisciano e essas porra não duram muito tempo dentro de mim.

Veio a expulsão dos caras e o sentimento “dá pra empatar” só crescia. A torcida ficou maluca. Falou de esquema, de roubo, de sistema. Normal. Eu virei pro amigo e falei: “Se fizer o gol nessa falta, a gente vira”. Bola na área, chute travado, contra-ataque do Botafogo, Tiquinho na área, penal.

PUTA QUE ME PARIU. “Foi tudo um pesadelo travestido de sonho”, queria ter pensado de forma poética. Mas só pensei que o futebol é uma grande merda mesmo.

O estádio esqueceu todos os complôs, era Tico e a bola. Era o 4 a 1. Era o título 28 anos depois. Meu Deus, vai acontecer!

Vai?

Weverton, o Medalia, tem a injusta fama de não pegar penais. Podia ter ido melhor no primeiro tempo também. Mas é o maior goleiro da história do Palmeiras, e isso não é pouca coisa. Pulou certo, pegou bem e fechou o rebote. Lateral pra nós, bate rápido, corre Endrick, a Esperança, vai, e falta nele. Vamo botar na área, afasta a zaga, a bola sobe, Endrick, o Gênio, domina com a parte debaixo do joelho, isso mesmo, e bate no cantinho de esquerda.

Ali, naquele momento, você vai ouvir relatos de todas as pessoas do mundo contando que “minha tia avó, que não vê jogo, estava vendo na hora e me falou ‘Palmeiras vai virar esse jogo'”. A verdade é que todo mundo sabia. Eu sabia, mas sabia com menos convicção porque né, coisas boas acontecem, mas calma.

Cinco minutos depois uma jogada que vimos tantas vezes. Bola na área, Gomez, o Gostoso, ajeita e alguém, desta feita Flaco, o Folte, mete pra dentro. 3 a 3. 45 do segundo tempo. O milagre tava feito. Tava?

Nove minutos de acréscimos. Ali no setor Superior Oeste A só tinham duas pessoas em pé, ou melhor, uma em pé e outra que em pé parece que tá sentada. Eu estava indignadíssimo com o meu Botafogo e toda aquela derretida. Inadmissível. Mas não xinguei jogadores, abracei o ódio ao árbitro. Muito mais fácil. “Tem que pegar ele de pau mesmo, não pode deixar assim”. Comentava como se meu filho se chamasse Gottardo.

Neste tempo final de jogo eu estava mesmo puto com o juiz, amarrando pra sair o empate. Flamenguista safado, risos. Teve até falta com piscadinha que não foi. Mas aí veio uma, lateral de campo, minuto final. GuiLo: “acho que é a última bola do jogo”. Concordei. Raphael, o Príncipe, bateu onde tinha que colocar, e Murilo, o Gigante, fez mais um em sua curta carreira de Palmeiras e saiu extravasando tudo o que eu queria fazer naquela hora.

Minha reação foi de arrancar o boné e jogar na cadeira. “Mas não é possível uma coisa dessas!” Olhei de canto pro GuiLo e o copo do Botafogo tapava sua boca que gritava abafada. Sentei, peguei em sua mãozinha, apertei forte com o sentimento de “Viramos, porra!” e também um pouco de “Enfia sua planilha no cu, porra, acreditaaa” Risos.

Acho que segurar ódio é muito pior, mas segurar alegria também não é aconselhável. Eu só queria sair correndo, abraçar os meus, xingar todo mundo que me chamou de pé frio nos zap e falar, como falei depois, que o “ÓH O PALMEIRAS É PICA, VIU”.

Mas no fim, a celebração interna e a constatação de viver o jogo mais incrível da história dos pontos corridos superaram tudo. A gente ainda esperou o amigo parmera que foi de visitante, fizemos nossa pequena festa com um vendedor vascaíno, que puxou até o famoso “Ana Julia” vasqueire naquela noite. “Lembra de um Vaixco e Ponte em Campinaix que um torcedor foi preso? Era eu, pô”.

Cheguei na rodoviária às 2h com meu copo do Botafogo, roupa do corpo, celular com cordinha, levemente embriagado, tentado ver os melhores momentos do jogo, ouvir os áudios, responder mensagens, curtir tudo.

O busão só ia sair 2h45 e na espera, ao meu lado, uma senhora cochilava, mas acordou com o Luis Roberto gritando GUOOL no meu celular. Pedi desculpas, e ela “Quanto foi o Botafogo?”

“Perdeu de virada pro Palmeirax”, eu não sei porque saiu uma tentativa de carioquês, mas ela não se ofendeu. “Não acredito que o Botafogo vai perder esse título”, um lamento de quem não é botafoguense mas claramente tem alguém querido que torce e está em situação de agonia com o time nos últimos meses. “O Palmeirax não pode ser campeão de novo”.

Desculpa, minha senhora, mas pode sim.

O início de um sonho.
Eu e o GuiLo, botafoguensíssimos.
Copo eterno de uma virada sem lembranças.
O ‘fio da esperança’ e o celular já falecidos.
Deu tudo maluco.